Depois do relatório dos dois delegados da Liga ao Benfica-FC Porto de 20 de Dezembro, depois do relatório do próprio instrutor do processo, eis que surge o terceiro e decisivo elemento de prova do que realmente aconteceu naquele mal-afamado túnel, naquele final de tarde: o relatório da PSP (de Lisboa, senhores!), referido pelo Expresso de sábado passado. Nele se escreve que os incidentes «ocorreram APÓS provocações verbais dos stewards da Prossegur», ao serviço do Benfica. Assim, e de uma penada: a) — a Prossegur vai ter de explicar como é que tem ao seu serviço seguranças que vão esperar jogadores à saída de um jogo, enfiando-se no túnel a provocá-los e como é que, ainda por cima, mentiu publicamente sobre esse facto; b) — o Benfica deveria explicar como é que consente tais comportamentos de um pessoal por si contratado; e c) — a Comissão Disciplinar da Liga vai ter de explicar como é que tem dois jogadores suspensos preventivamente há dois meses por terem reagido fisicamente a provocações (leia-se, insultos) verbais de quem, afinal de contas, tem por missão evitar problemas e não criá-los. Eu sei que cada um é como é, mas eu, se me chamarem «filho da p****», não retribuo com um sorriso.
«Mão amiga» disponibilizou anteontem, no site de A BOLA, as célebres imagens do túnel — tal como era de prever, a partir do momento em que se descobriu que as imagens não são meio de prova legítimo para procedimentos disciplinares. Aqui, no Rio de Janeiro, onde estou, devido a dificuldades com a net não consegui ver mais do que escassos segundos desse filme de série B. O suficiente para perceber que as imagens não são contínuas, mas sim montadas, e que, convenientemente também, não há som ambiente, para ouvirmos as tais provocaçõezinhas verbais dos senhores da Prossegur. Mas o pouco que consegui ver, também serviu para apurar duas coisas estranhas: uma, que eles não estavam à espera dos jogadores pacificamente encostados à parede ou à conversa entre si, mas sim alinhados a meio do túnel, virados para a sua entrada e em atitude de quem tem alguma coisa ensaiada; e outra, que um misterioso personagem civil, de fato escuro, percorre duas vezes a fila dos seguranças falando discretamente com eles. Adorava saber o que lhes terá dito… Mas uma coisa me basta, nesta altura do campeonato: quando aqui há umas semanas escrevi que isto me começava a cheirar a «emboscada no túnel», ainda só tinha a versão dos jornalistas benfiquistas — com os «factos» já apurados pelo testemunho benfiquista, e a sentença já dada, de acordo com as denunciadas intenções da CD. Pois, agora, já não tenho dúvida alguma: os factos foram deliberadamente deturpados, os réus estão trocados e o túnel da Luz tem de ser investigado a sério.
Rúben Micael e Cléber, ambos então jogadores do Nacional, já tinham dito que se passavam estranhas coisas no túnel da Luz, que mereciam ser investigadas. Na semana passada, eles confirmaram as declarações e o Benfica respondeu com um comunicado não muito elegante, acusando o Rúben de já estar a mostrar serviço ao FC Porto. Infelizmente para o Benfica, porém, as televisões repescaram e puseram no ar as declarações de Rúben Micael, feitas na altura, em Outubro passado, quando nem ele nem o FC Porto suspeitavam ainda que se iriam encontrar. E também ficámos a saber que já na época anterior, naquele mesmo local, também houve umas provocaçõezinhas aos jogadores ou «agentes desportivos» do FC Porto, mas que não acabaram em vias de facto, nem foram registadas pelas câmaras, porque estas, coincidentemente, tinham sido desligadas de véspera… Mais estranho ainda foi saber também que já então a PSP enviara um relatório desses factos à CD da Liga — a qual não viu motivo para agir, de forma alguma. Tanta coisa que afinal acontece naquele túnel e só agora é que os justiceiros se preocupam com ele!
Apurado assim o que, de facto, aconteceu no túnel do Benfica, desmentida por quem de direito a versão entusiasticamente acolhida desde logo pela imprensa ao serviço do Benfica, resta enquadrar juridicamente tais factos para chegar a uma decisão.
Pois bem. Como já se percebeu, é intenção da CD não penalizar nunca os jogadores do FC Porto em menos de três meses de suspensão — qualquer coisa como uns doze jogos. É o que se infere da tranquilidade com que logo os pôs em suspensão preventiva até final do processo — o qual nunca demorará menos de três meses. Então, virá sempre aplicar-lhes uma pena que cubra todo o período de suspensão preventiva. E assim dirão que fizeram «justiça» e até foram brandos. Sem vergonha alguma.
Antes de ter visto a «verdade provisória» desmascarada pelos delegados e instrutor da própria Liga e pela PSP, a CD actuou como se estivesse em face do mais grave incidente jamais protagonizado por futebolistas num estádio português. Basta pensar que o Cristiano Ronaldo partiu o nariz com uma cotovelada intencional a um adversário e levou dois jogos de suspensão — reclamados pelo Real Madrid, com o apoio da nossa imprensa desportiva. E o João Vieira Pinto, depois de expulso pelo árbitro, enfiou-lhe um murro no estômago, em jogo dos quartos-de-final de um Mundial de futebol, com meio planeta a ver — e levou seis meses de suspensão, com reclamação da FPF e da nossa imprensa desportiva. Mas, para os jogadores do FC Porto, que apenas perante escassas testemunhas responderam a murro e a pontapé a uma provocação organizada de elementos estranhos ao jogo, que estavam onde não deviam estar (e por isso é que o Benfica é multado), a esses, a CD queria aplicar-lhes nada menos do que seis meses a três anos de suspensão!
O mais extraordinário para mim é pensar em como a cegueira e ódio clubísticos chegaram a tal ponto que haja gente, aparentemente razoável e bem formada, que ache isto possível e natural. E, para o fazerem, agarram-se ao argumento de que a lei, de facto, é absurda, mas é assim e há que aplicá-la.
Já foi explicado uma e outra vez, mas volto a explicar: a lei pode ser absurda, mas não é assim. Assim é apenas a interpretação que da lei quer fazer o dr. Ricardo Costa e a CD da Liga. O que a lei diz é que tais penas serão aplicadas a quem agredir «agentes desportivos» — mas não diz quem são ou devam ser considerados «agentes desportivos». E, vai daí e sem hesitar, a CD resolve que, tendo as pretensas agressões sido cometidas por jogadores do FC Porto sobre seguranças privados ao serviço de um clube, tais seguranças são automaticamente elevados à categoria de «agentes desportivos». Não é preciso ser jurista nem muito perspicaz para perceber que isto é uma batota descarada. Um agente desportivo, não sendo um jogador (porque, para agressões cometidas sobre esses, conta outra cláusula do regulamento e punições infinitamente mais suaves), só pode ser alguém que intervenha no jogo, acreditado para tal pela própria Liga. E há-de ser alguém cujas funções sejam de tal forma importantes que possam gozar desta protecção extrema: os árbitros, técnicos e dirigentes e delegados da própria Liga. Não, com certeza, os apanha-bolas, os arrumadores e porteiros, os empregados dos bares concessionados ou os seguranças. Nem sequer os policias de serviço. Nenhum destes elementos, seguranças incluídos, está acreditado pela Liga — que, aliás, nem sabe quem eles são. Só mesmo um delírio persecutório e o tradicional assanhamento da CD contra o FC Porto permite imaginar que é possível promover os seguranças do Benfica a «agentes desportivos» — com o efeito útil, no caso, de tirar do jogo e do campeonato o mais temível avançado portista.
Aliás e como já notou o meu correligionário Rui Moreira, se a Liga agora considera os stewards como «agentes desportivos» estamos perante uma curiosa situação de direitos sem deveres correspondentes. Se os stewards são agredidos, ai Jesus, que agrediram um agente desportivo! Mas se são eles a agredir ou a insultar, é pena, mas nada se pode fazer, porque quem manda neles é o clube que os contrata e não a Liga, que não tem qualquer poder disciplinar sobre eles. Não é preciso ter sequer dois dedos de testa para entender que está aberta a porta para toda a espécie de batota organizada: basta contratar um bando de jagunços, chamar-lhes stewards e mandá-los para o túnel ou para a pista agredir e insultar os adversários. E, quando estes responderem, faz-se justiça: seis meses a três anos de suspensão para os jogadores; nada para os seguranças. Que ovo de Colombo!
E depois, vêm falar em verdade desportiva e moralização do futebol! Tenham vergonha e deixem jogar o Hulk, sem medo! Porque é disso e só disso que se trata.
(crónica de Miguel Sousa Tavares retirada do blog FCP para sempre)
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